Parte do discurso que o escritor Orhan Pamuk proferiu ao receber o Prêmio Nobel
Dois anos antes de sua morte, meu pai entregou-me uma pequena valise cheia de escritos, manuscritos e cadernos seus. Assumindo seu habitual jeito zombeteiro e jovial, ele disse que queria que eu os lesse depois que houvesse partido, com o que queria dizer, depois que morresse.
'Dê uma olhada', ele disse, parecendo um pouco embaraçado. 'Veja se tem alguma coisa aí que você possa usar. Talvez depois que eu me for você possa fazer uma seleção e publicar.'
Estávamos no meu estúdio, rodeados de livros. Meu pai procurava um lugar para depositar a valise, andando de um lado para outro como alguém que quisesse se livrar de um fardo penoso. Por fim, ele a pousou em silêncio num canto remoto. Foi um momento embaraçoso que nenhum de nós jamais esqueceria, mas depois que ele passou e voltamos a nossos papéis usuais, tocando a vida com leveza, nossas personas joviais, zombeteiras se recompuseram e nós relaxamos. Conversamos então como sempre fazíamos sobre as coisas triviais do cotidiano, os intermináveis problemas políticos da Turquia, e as aventuras empresariais quase sempre fracassadas de meu pai, sem muito pesar.
Lembro-me de que, depois que meu pai saiu, durante vários dias eu passei de um lado para outro pela valise sem tocá-la. Já estava familiarizado com essa pequena valise de couro preta, e sua fechadura, e seus cantos arredondados. Meu pai a levava nas viagens curtas e às vezes a usava para carregar documentos para o trabalho. Lembro-me de que, quando era criança e meu pai chegava de viagem, eu abria essa valise e remexia em suas coisas, saboreando o aroma de colônia e países estrangeiros. Essa valise era um amigo familiar, um poderoso lembrete de minha infância, meu passado, mas agora eu não conseguia nem sequer tocá-la. Por quê? Sem dúvida pelo peso misterioso do que ela continha.
Vou falar agora do significado desse peso. É o que uma pessoa cria quando ela se fecha num quarto, senta-se a uma mesa, e se enfurna para expressar seus pensamentos - é isto, o significado da literatura.
Quando finalmente toquei na valise de meu pai, ainda não consegui me convencer a abri-la, mas sabia o que havia dentro daqueles cadernos. Eu tinha visto meu pai escrevendo coisas em alguns deles. Aquela não fora a primeira vez que eu ouvira sobre a carga pesada dentro da valise. Meu pai tinha uma grande biblioteca; em sua mocidade, no fim dos anos 1940 , desejara ser um poeta em Istambul, e havia traduzido Valéry para o turco, mas não quisera viver o tipo de vida condizente com escrever poesia num país pobre com poucos leitores. O pai de meu pai - meu avô - havia sido um empresário rico; meu pai levara uma vida confortável quando criança e quando jovem, e não tinha nenhum desejo de enfrentar dificuldades pelo bem da literatura, de escrever. Ele amava a vida com todas suas belezas - isso eu compreendia.
A primeira coisa que me manteve distante dos conteúdos da valise de meu pai foi, é claro, o medo de que poderia não gostar do que lesse. Como meu pai sabia disso, ele tomara a precaução de agir como se não levasse seus conteúdos a sério. Depois de trabalhar como escritor por 25 anos, isso me doeu. Mas eu nem queria ficar zangado com meu pai por não levar a literatura suficientemente a sério... Meu verdadeiro medo, a coisa crucial que não desejava saber ou descobrir, era a possibilidade de que meu pai pudesse ser um bom escritor. Não conseguia abrir a valise de meu pai por temor disso. Pior ainda, não conseguia nem sequer admiti-lo abertamente para mim. Se emergisse uma literatura verdadeira e grande da valise de meu pai, eu teria de reconhecer que dentro de meu pai existia um homem completamente diferente. Era uma possibilidade assustadora. Porque mesmo em minha idade avançada eu queria que meu pai fosse apenas meu pai - não um escritor.
Um escritor é alguém que passa anos tentando pacientemente descobrir o segundo ser dentro dele, e o mundo que o faz ser o que ele é: quando falo de escrever, o que primeiro me vem à mente não é um romance, um poema, ou a tradição literária, é uma pessoa que se tranca num quarto, senta-se a uma mesa, e sozinha, se volta para dentro; em meio a suas sombras, ela constrói um novo mundo com palavras. Esse homem - ou essa mulher - pode usar uma máquina de escrever, se valer das facilidades de um computador, ou escrever com uma caneta no papel como eu tenho feito há 30 anos. Enquanto escreve, ele pode tomar chá ou café, ou fumar cigarros. De vez em quando, pode se levantar da mesa para olhar pela janela as crianças brincando na rua, e, se tiver sorte, para árvores e uma vista, ou pode olhar para uma parede escura. Ele pode escrever poemas, peças, ou romances, como eu. Todas essas diferenças vêm depois da tarefa crucial de sentar-se à mesa e voltar-se pacientemente para dentro. Escrever é transformar esse olhar para dentro em palavras, estudar o mundo em que essa pessoa entra quando se retira para dentro de si, e fazê-lo com paciência, obstinação e alegria. Enquanto me sento à minha mesa, durante dias, meses, anos, lentamente acrescentando novas palavras numa página vazia, sinto como se estivesse criando um novo mundo, como se estivesse dando vida àquela outra pessoa dentro de mim, da mesma maneira que alguém poderia construir uma ponte ou uma cúpula, pedra por pedra. As pedras que nós, escritores, usamos são as palavras. Enquanto as seguramos em nossas mãos, sentindo as maneiras como cada uma delas se liga às outras, olhando para elas às vezes de longe, às vezes quase acariciando-as com nossos dedos e as pontas de nossas canetas, sopesando-as, girando-as, ano após ano, paciente e esperançosamente, nós criamos novos mundos.
O segredo do escritor não é a inspiração - pois nunca está claro de onde ela vem -, é a sua teimosia, a sua paciência. Aquele adorável ditado turco - cavar um poço com uma agulha - me parece ter sido dito com escritores em mente. Nas histórias antigas, eu adoro a paciência de Ferhat que escava através de montanhas para chegar ao seu amor - e o compreendo, também. Em meu romance, Meu Nome É Vermelho, quando escrevi que os antigos miniaturistas persas haviam desenhado o mesmo cavalo com a mesma paixão por tantos anos, memorizando cada pincelada, que poderiam recriar aquele belo cavalo mesmo de olhos fechados, sabia que estava falando da profissão de escrever e de minha própria vida. Se um escritor quer contar sua própria história - que a conte lentamente, e como se fosse a história de outra pessoa - para sentir o poder da história crescer dentro dele, para se sentar à mesa e pacientemente se entregar a essa arte - esse ofício, ele primeiramente precisa ter recebido alguma esperança. O anjo da inspiração (que faz visitas regulares a alguns e raramente a outros) favorece o esperançoso e o confiante, e é quando um escritor se sente mais solitário, quando ele se sente mais inseguro sobre seus esforços, seus sonhos, e o valor de sua escrita - quando acha que sua história é apenas sua história - são esses momentos que o anjo escolhe para revelar-lhe histórias, imagens e sonhos que formularão o mundo que ele deseja construir. Quando penso nos livros aos quais devotei toda minha vida, fico muito surpreso com aqueles momentos em que senti como se as sentenças, sonhos e páginas que me deixaram tão enlevadamente feliz não tivessem saído de minha própria imaginação - que outro poder os havia descoberto e generosamente me presenteado com eles.
Tinha medo de abrir a valise de meu pai e ler seus cadernos porque sabia que ele não suportaria as dificuldades que eu suportei, que não era a solidão que ele amava, mas sim misturar-se com amigos, multidões, salões, piadas, companhia. Mas depois meus pensamentos tomaram um rumo diferente. Esses pensamentos, esses sonhos de renúncia e paciência, eram preconceitos que retirei de minha própria vida e minha própria experiência como escritor. Há muitos escritores brilhantes que escreveram rodeados de multidões e vida familiar, no ardor de companhia, de tagarelices alegres. Além disso, quando nós éramos pequenos, meu pai se cansou da monotonia da vida familiar e nos deixou para ir a Paris, onde - como tantos outros escritores - sentava-se em seu quarto de hotel enchendo cadernos. Eu sabia, também, que alguns daqueles cadernos estavam nessa valise, porque alguns anos antes de ele me trazer a valise, meu pai finalmente começara a me falar daquele período de sua vida. Ele falava daqueles anos quando eu ainda era criança, mas não mencionava suas vulnerabilidades, seus sonhos de se tornar um escritor, ou as questões de identidade que o haviam assaltado em seu quarto de hotel. Ele antes me contava sobre todas as vezes que vira Sartre nas calçadas de Paris, sobre os livros que havia lido e os filmes que havia visto, tudo com a sinceridade exaltada de alguém transmitindo notícias muito importantes. Quando me tornei escritor, nunca esqueci que isto se deveu, em parte, ao fato de que tivera um pai que falava muito mais de escritores mundiais que de paxás ou grandes líderes religiosos. Por isso, talvez, eu devesse ler os cadernos de meu pai com isso em mente, e lembrando quanto devia à sua grande biblioteca. Tinha de ter em mente que quando estava vivendo conosco, meu pai, como eu, gostava de ficar só com seus livros e pensamentos - e não dar uma atenção excessiva à qualidade literária de seus escritos. (...)
Uma semana depois que veio ao meu escritório e me deixou a valise, meu pai me fez uma nova visita; como sempre, trouxe-me uma barra de chocolate (esquecera-se de que eu tinha 48 anos). Como sempre, conversamos e rimos sobre vida, política e fofocas familiares. Chegou um momento em que os olhos de meu pai foram para o canto onde ele havia deixado a valise e ele viu que eu a havia movido. Nós nos entreolhamos. Fez-se um silêncio tenso. Eu não lhe contei que havia aberto a valise e tentado ler seus conteúdos; antes desviei os olhos. Mas ele compreendeu. Assim como eu compreendi que ele compreendera. Assim como ele compreendeu que eu havia compreendido que ele compreendera. Mas toda essa compreensão durou apenas alguns segundos. Porque meu pai era um homem feliz e cordial que tinha fé em si: ele sorriu para mim como sempre fazia. E quando saía da casa, repetiu todas as coisas amáveis e encorajadoras que sempre me dizia, como pai.
Como sempre, eu o observei sair, invejando sua felicidade, seu temperamento despreocupado e imperturbável. Mas me lembrei de que naquele dia havia também um traço de alegria em mim que me envergonhou. Ele era provocado pelo pensamento de que talvez eu não estivesse tão à vontade na vida quanto ele, talvez não tivesse levado uma vida tão feliz ou despreocupada quanto ele, mas que a havia dedicado a escrever - vocês entenderam... estava envergonhado de pensar essas coisas em detrimento de meu pai. De todas as pessoas, meu pai, que jamais havia sido a fonte de meu sofrimento - que me deixara livre. Tudo isso deveria nos lembrar que escrita e literatura estão intimamente ligadas a uma carência no centro de nossas vidas, e a nossos sentimentos de felicidade e culpa.
Mas minha história tem uma simetria que imediatamente me lembrou de algo mais daquele dia, e isso me causou um sentimento de culpa ainda mais profundo. Vinte e três anos antes de meu pai me deixar sua valise, e quatro anos depois de eu ter-me decidido, aos 22 anos, me tornar um romancista, e, abandonando tudo, me trancar num quarto e terminar meu primeiro romance, Cevdet Bey e Filhos; com as mãos tremendo eu havia entregue a meu pai um texto datilografado do romance ainda não publicado, para que ele pudesse ler e me dizer o que achava. Isso não foi simplesmente por ter confiança no seu gosto e seu intelecto: sua opinião era muito importante para mim porque ele, diferentemente de minha mãe, não se opusera a meu desejo de me tornar escritor. Naquele altura, meu pai não estava conosco, mas muito longe. Esperei com impaciência pela sua volta. Quando ele chegou, duas semanas depois, corri para abrir a porta. Meu pai não disse nada, mas, de repente, me abraçou de uma maneira que me dizia que havia gostado muito. Por um momento, ficamos mergulhados numa espécie de silêncio desajeitado que com tanta freqüência acompanha os momentos de grande emoção. Depois, quando nos acalmamos e começamos a conversar, meu pai recorreu à linguagem altamente carregada e exagerada para expressar sua confiança em mim ou em meu primeiro romance: ele me disse que um dia eu ganharia o prêmio que estou aqui para receber com tanta felicidade.
Ele disse isso não porque estivesse tentando me convencer de sua boa opinião, ou estabelecer este prêmio como uma meta; ele o disse como um pai turco dando apoio a seu filho, encorajando-o ao dizer: 'Um dia você se tornará um paxá!' Durante anos, sempre que me via, ele me encorajava com as mesmas palavras.
Meu pai morreu em dezembro de 2002.
Hoje, aqui diante da Academia Sueca e dos ilustres membros que me concederam este grande prêmio - esta grande honra - e seus ilustres convidados, gostaria carinhosamente que ele pudesse estar entre nós.
Dois anos antes de sua morte, meu pai entregou-me uma pequena valise cheia de escritos, manuscritos e cadernos seus. Assumindo seu habitual jeito zombeteiro e jovial, ele disse que queria que eu os lesse depois que houvesse partido, com o que queria dizer, depois que morresse.
'Dê uma olhada', ele disse, parecendo um pouco embaraçado. 'Veja se tem alguma coisa aí que você possa usar. Talvez depois que eu me for você possa fazer uma seleção e publicar.'
Estávamos no meu estúdio, rodeados de livros. Meu pai procurava um lugar para depositar a valise, andando de um lado para outro como alguém que quisesse se livrar de um fardo penoso. Por fim, ele a pousou em silêncio num canto remoto. Foi um momento embaraçoso que nenhum de nós jamais esqueceria, mas depois que ele passou e voltamos a nossos papéis usuais, tocando a vida com leveza, nossas personas joviais, zombeteiras se recompuseram e nós relaxamos. Conversamos então como sempre fazíamos sobre as coisas triviais do cotidiano, os intermináveis problemas políticos da Turquia, e as aventuras empresariais quase sempre fracassadas de meu pai, sem muito pesar.
Lembro-me de que, depois que meu pai saiu, durante vários dias eu passei de um lado para outro pela valise sem tocá-la. Já estava familiarizado com essa pequena valise de couro preta, e sua fechadura, e seus cantos arredondados. Meu pai a levava nas viagens curtas e às vezes a usava para carregar documentos para o trabalho. Lembro-me de que, quando era criança e meu pai chegava de viagem, eu abria essa valise e remexia em suas coisas, saboreando o aroma de colônia e países estrangeiros. Essa valise era um amigo familiar, um poderoso lembrete de minha infância, meu passado, mas agora eu não conseguia nem sequer tocá-la. Por quê? Sem dúvida pelo peso misterioso do que ela continha.
Vou falar agora do significado desse peso. É o que uma pessoa cria quando ela se fecha num quarto, senta-se a uma mesa, e se enfurna para expressar seus pensamentos - é isto, o significado da literatura.
Quando finalmente toquei na valise de meu pai, ainda não consegui me convencer a abri-la, mas sabia o que havia dentro daqueles cadernos. Eu tinha visto meu pai escrevendo coisas em alguns deles. Aquela não fora a primeira vez que eu ouvira sobre a carga pesada dentro da valise. Meu pai tinha uma grande biblioteca; em sua mocidade, no fim dos anos 1940 , desejara ser um poeta em Istambul, e havia traduzido Valéry para o turco, mas não quisera viver o tipo de vida condizente com escrever poesia num país pobre com poucos leitores. O pai de meu pai - meu avô - havia sido um empresário rico; meu pai levara uma vida confortável quando criança e quando jovem, e não tinha nenhum desejo de enfrentar dificuldades pelo bem da literatura, de escrever. Ele amava a vida com todas suas belezas - isso eu compreendia.
A primeira coisa que me manteve distante dos conteúdos da valise de meu pai foi, é claro, o medo de que poderia não gostar do que lesse. Como meu pai sabia disso, ele tomara a precaução de agir como se não levasse seus conteúdos a sério. Depois de trabalhar como escritor por 25 anos, isso me doeu. Mas eu nem queria ficar zangado com meu pai por não levar a literatura suficientemente a sério... Meu verdadeiro medo, a coisa crucial que não desejava saber ou descobrir, era a possibilidade de que meu pai pudesse ser um bom escritor. Não conseguia abrir a valise de meu pai por temor disso. Pior ainda, não conseguia nem sequer admiti-lo abertamente para mim. Se emergisse uma literatura verdadeira e grande da valise de meu pai, eu teria de reconhecer que dentro de meu pai existia um homem completamente diferente. Era uma possibilidade assustadora. Porque mesmo em minha idade avançada eu queria que meu pai fosse apenas meu pai - não um escritor.
Um escritor é alguém que passa anos tentando pacientemente descobrir o segundo ser dentro dele, e o mundo que o faz ser o que ele é: quando falo de escrever, o que primeiro me vem à mente não é um romance, um poema, ou a tradição literária, é uma pessoa que se tranca num quarto, senta-se a uma mesa, e sozinha, se volta para dentro; em meio a suas sombras, ela constrói um novo mundo com palavras. Esse homem - ou essa mulher - pode usar uma máquina de escrever, se valer das facilidades de um computador, ou escrever com uma caneta no papel como eu tenho feito há 30 anos. Enquanto escreve, ele pode tomar chá ou café, ou fumar cigarros. De vez em quando, pode se levantar da mesa para olhar pela janela as crianças brincando na rua, e, se tiver sorte, para árvores e uma vista, ou pode olhar para uma parede escura. Ele pode escrever poemas, peças, ou romances, como eu. Todas essas diferenças vêm depois da tarefa crucial de sentar-se à mesa e voltar-se pacientemente para dentro. Escrever é transformar esse olhar para dentro em palavras, estudar o mundo em que essa pessoa entra quando se retira para dentro de si, e fazê-lo com paciência, obstinação e alegria. Enquanto me sento à minha mesa, durante dias, meses, anos, lentamente acrescentando novas palavras numa página vazia, sinto como se estivesse criando um novo mundo, como se estivesse dando vida àquela outra pessoa dentro de mim, da mesma maneira que alguém poderia construir uma ponte ou uma cúpula, pedra por pedra. As pedras que nós, escritores, usamos são as palavras. Enquanto as seguramos em nossas mãos, sentindo as maneiras como cada uma delas se liga às outras, olhando para elas às vezes de longe, às vezes quase acariciando-as com nossos dedos e as pontas de nossas canetas, sopesando-as, girando-as, ano após ano, paciente e esperançosamente, nós criamos novos mundos.
O segredo do escritor não é a inspiração - pois nunca está claro de onde ela vem -, é a sua teimosia, a sua paciência. Aquele adorável ditado turco - cavar um poço com uma agulha - me parece ter sido dito com escritores em mente. Nas histórias antigas, eu adoro a paciência de Ferhat que escava através de montanhas para chegar ao seu amor - e o compreendo, também. Em meu romance, Meu Nome É Vermelho, quando escrevi que os antigos miniaturistas persas haviam desenhado o mesmo cavalo com a mesma paixão por tantos anos, memorizando cada pincelada, que poderiam recriar aquele belo cavalo mesmo de olhos fechados, sabia que estava falando da profissão de escrever e de minha própria vida. Se um escritor quer contar sua própria história - que a conte lentamente, e como se fosse a história de outra pessoa - para sentir o poder da história crescer dentro dele, para se sentar à mesa e pacientemente se entregar a essa arte - esse ofício, ele primeiramente precisa ter recebido alguma esperança. O anjo da inspiração (que faz visitas regulares a alguns e raramente a outros) favorece o esperançoso e o confiante, e é quando um escritor se sente mais solitário, quando ele se sente mais inseguro sobre seus esforços, seus sonhos, e o valor de sua escrita - quando acha que sua história é apenas sua história - são esses momentos que o anjo escolhe para revelar-lhe histórias, imagens e sonhos que formularão o mundo que ele deseja construir. Quando penso nos livros aos quais devotei toda minha vida, fico muito surpreso com aqueles momentos em que senti como se as sentenças, sonhos e páginas que me deixaram tão enlevadamente feliz não tivessem saído de minha própria imaginação - que outro poder os havia descoberto e generosamente me presenteado com eles.
Tinha medo de abrir a valise de meu pai e ler seus cadernos porque sabia que ele não suportaria as dificuldades que eu suportei, que não era a solidão que ele amava, mas sim misturar-se com amigos, multidões, salões, piadas, companhia. Mas depois meus pensamentos tomaram um rumo diferente. Esses pensamentos, esses sonhos de renúncia e paciência, eram preconceitos que retirei de minha própria vida e minha própria experiência como escritor. Há muitos escritores brilhantes que escreveram rodeados de multidões e vida familiar, no ardor de companhia, de tagarelices alegres. Além disso, quando nós éramos pequenos, meu pai se cansou da monotonia da vida familiar e nos deixou para ir a Paris, onde - como tantos outros escritores - sentava-se em seu quarto de hotel enchendo cadernos. Eu sabia, também, que alguns daqueles cadernos estavam nessa valise, porque alguns anos antes de ele me trazer a valise, meu pai finalmente começara a me falar daquele período de sua vida. Ele falava daqueles anos quando eu ainda era criança, mas não mencionava suas vulnerabilidades, seus sonhos de se tornar um escritor, ou as questões de identidade que o haviam assaltado em seu quarto de hotel. Ele antes me contava sobre todas as vezes que vira Sartre nas calçadas de Paris, sobre os livros que havia lido e os filmes que havia visto, tudo com a sinceridade exaltada de alguém transmitindo notícias muito importantes. Quando me tornei escritor, nunca esqueci que isto se deveu, em parte, ao fato de que tivera um pai que falava muito mais de escritores mundiais que de paxás ou grandes líderes religiosos. Por isso, talvez, eu devesse ler os cadernos de meu pai com isso em mente, e lembrando quanto devia à sua grande biblioteca. Tinha de ter em mente que quando estava vivendo conosco, meu pai, como eu, gostava de ficar só com seus livros e pensamentos - e não dar uma atenção excessiva à qualidade literária de seus escritos. (...)
Uma semana depois que veio ao meu escritório e me deixou a valise, meu pai me fez uma nova visita; como sempre, trouxe-me uma barra de chocolate (esquecera-se de que eu tinha 48 anos). Como sempre, conversamos e rimos sobre vida, política e fofocas familiares. Chegou um momento em que os olhos de meu pai foram para o canto onde ele havia deixado a valise e ele viu que eu a havia movido. Nós nos entreolhamos. Fez-se um silêncio tenso. Eu não lhe contei que havia aberto a valise e tentado ler seus conteúdos; antes desviei os olhos. Mas ele compreendeu. Assim como eu compreendi que ele compreendera. Assim como ele compreendeu que eu havia compreendido que ele compreendera. Mas toda essa compreensão durou apenas alguns segundos. Porque meu pai era um homem feliz e cordial que tinha fé em si: ele sorriu para mim como sempre fazia. E quando saía da casa, repetiu todas as coisas amáveis e encorajadoras que sempre me dizia, como pai.
Como sempre, eu o observei sair, invejando sua felicidade, seu temperamento despreocupado e imperturbável. Mas me lembrei de que naquele dia havia também um traço de alegria em mim que me envergonhou. Ele era provocado pelo pensamento de que talvez eu não estivesse tão à vontade na vida quanto ele, talvez não tivesse levado uma vida tão feliz ou despreocupada quanto ele, mas que a havia dedicado a escrever - vocês entenderam... estava envergonhado de pensar essas coisas em detrimento de meu pai. De todas as pessoas, meu pai, que jamais havia sido a fonte de meu sofrimento - que me deixara livre. Tudo isso deveria nos lembrar que escrita e literatura estão intimamente ligadas a uma carência no centro de nossas vidas, e a nossos sentimentos de felicidade e culpa.
Mas minha história tem uma simetria que imediatamente me lembrou de algo mais daquele dia, e isso me causou um sentimento de culpa ainda mais profundo. Vinte e três anos antes de meu pai me deixar sua valise, e quatro anos depois de eu ter-me decidido, aos 22 anos, me tornar um romancista, e, abandonando tudo, me trancar num quarto e terminar meu primeiro romance, Cevdet Bey e Filhos; com as mãos tremendo eu havia entregue a meu pai um texto datilografado do romance ainda não publicado, para que ele pudesse ler e me dizer o que achava. Isso não foi simplesmente por ter confiança no seu gosto e seu intelecto: sua opinião era muito importante para mim porque ele, diferentemente de minha mãe, não se opusera a meu desejo de me tornar escritor. Naquele altura, meu pai não estava conosco, mas muito longe. Esperei com impaciência pela sua volta. Quando ele chegou, duas semanas depois, corri para abrir a porta. Meu pai não disse nada, mas, de repente, me abraçou de uma maneira que me dizia que havia gostado muito. Por um momento, ficamos mergulhados numa espécie de silêncio desajeitado que com tanta freqüência acompanha os momentos de grande emoção. Depois, quando nos acalmamos e começamos a conversar, meu pai recorreu à linguagem altamente carregada e exagerada para expressar sua confiança em mim ou em meu primeiro romance: ele me disse que um dia eu ganharia o prêmio que estou aqui para receber com tanta felicidade.
Ele disse isso não porque estivesse tentando me convencer de sua boa opinião, ou estabelecer este prêmio como uma meta; ele o disse como um pai turco dando apoio a seu filho, encorajando-o ao dizer: 'Um dia você se tornará um paxá!' Durante anos, sempre que me via, ele me encorajava com as mesmas palavras.
Meu pai morreu em dezembro de 2002.
Hoje, aqui diante da Academia Sueca e dos ilustres membros que me concederam este grande prêmio - esta grande honra - e seus ilustres convidados, gostaria carinhosamente que ele pudesse estar entre nós.
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