sábado, setembro 02, 2006

Entrevista de Vera Mantero e José Gil (“Elipse – Uma Gazeta Improvável”, Lisboa, 1998")


Ora, a mais recente expressão desta urgência encontrei numa revista editada em Portugal, intitulada Elipse, cujo primeiro número tem por tema A vida pobre. Depois de afirmar que a cultura está em erosão, e também o espírito, a bailarina Vera Mantero escreve: “O espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. O espírito é uma criatura muito ávida de ocupação. precisa de se ocupar constantemente. o espírito deve ser o único pedaço de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com qualquer coisa. se dissermos a coisa assim, a palavra ‘entretenimento’ torna-se muito menos pecaminosa. enquanto me entretenho com o Glenn Gould e as suas variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha volta. Necessitamos das artes para não morrermos. as artes falam connosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam. não se calam, não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio... vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. talvez não só de possibilidade como de interesse. um ponto em que é possível e interessante existir.... o ser humano precisa de não estar sempre no quotidiano, precisa de sair do quotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. Precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objectivos diferentes desses, precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais subtil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que baralham e iluminam. é preciso reconhecer essas coisas, assinalá-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em acções, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reorganizando. É preciso olear o espírito, olear o ser. é preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. é preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na associação, no delírio, na sujidade... na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objectos e sentidos entre si, é preciso entrar na transformação, é preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, nas palavras no humor, no pensamento, na relação com os outros.
Nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter muito pouco disto e é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes estamos muito tristes ou temos a sensação de que a vida desapareceu de cá de dentro.”
Chamo a atenção para esse ponto de possibilidade e de interesse em que um espírito deveria estar para que fosse possível e interessante existir, como diz Mantero, e que é justamente o que viver e pensar como porcos nos impede. José Gil, como que em eco aos termos empregados por Mantero, escreve em seu artigo, no mesmo número: “Aqui há tempos atingi aquele ponto central de onde descobri a verdade: que a minha vida é irremediavelmente pobre. Não há nada a fazer-lhe. Aliás, já tentei de tudo, e quanto mais me agitava para contrariar a tendência, mais me aproximava daquele ponto terrível. [...] Não que me falte alguma coisa. Vou a concertos e a exposições, leio muitos livros e revistas, tenho uma discoteca e biblioteca razoáveis, tenho amigos e relações, em suma nada me falta para ter uma bela vida. Mas criou-se uma espécie de fosso à minha volta. É invisível, mas está lá, e faz-se sentir mesmo no meio do concerto mais empolgante. O que ouço toca-me, mas é como se não me tocasse, se olho bem; o que leio fica apenas em mim, não passa de mim, e acaba por amarelecer, sem eco; o que vejo nas galerias de arte e o que lá se diz, é como se não tivessem a ver com a minha vida. E tudo o resto é assim. Há um grande buraco no meio das pessoas que lhes abafa a fala e absorve as vozes que vêm dos outros... O buraco alastra como o do ozonio. Vai comendo o céu. É como se a pouco e pouco me comesse o corpo. Noto agora que há muito tempo a vida se me empobrecia. Muitas coisas começaram a desaparecer dos meus hábitos, sem que desse por isso. Primeiro, as palavras. Algumas, para começar, depois muitas, numa torrente imensa, desapareceram do meu vocabulário... Com as palavras foram-se idéias, sensações, sentimentos. Gostava imenso de uma ária de ópera [...] Então chorava. Era a melhor maneira de me exprimir. Hoje, já nada disso acontece. É que já não preciso de me exprimir. Tudo me exprime, e muito melhor do que poderia fazê-lo. Para começar, há o Plácido Domingo, e os outros, e as vozes que porventura nascessem na garganta, seriam logo canalizadas, moldadas por esses óptimos cantores de ópera. Logo ali, no fundo da garganta, quando eu quisesse dizer a minha solidão e o abandono em que me deixou o amor, eu ouviria, tenho certeza, o fulgor e o luxo da voz de Plácido Domingo... E quem sou eu para pretender assim exprimir emoções tão fortes, mais fortes do que todas aquelas de que sou capaz? Por isso calo-me.”

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