domingo, dezembro 10, 2006

A Multiplicidade Shakespeare - Peter Brooke


O motivo pelo qual gosto tanto de Shakespeare é que ele não tem um ponto de vista. Ninguém pode dizer sobre uma de suas frases: "Ah, aí ouvimos a voz do autor, foi isso que ele quis dizer...", enquanto na maioria dos autores ouvimos a cada instante a voz e a autoridade do dramaturgo, que utiliza essa forma coletiva como instrumento pessoal para falar ao mundo. A maravilha de Shakespeare é que esse homem conseguiu muito rapidamente absorver todas as impressões da vida ao seu redor, incluindo o que estava distante dele, vindo de classes sociais que ele nunca havia freqüentado. E depois, no momento da escrita, que aparentemente para ele era de uma rapidez extraordinária, toda a vida era repassada, com os suportes necessários: porque é preciso ter histórias, é preciso ter personagens. E eram iluminados de uma maneira extraordinária por essa criatividade absoluta, vinda de um homem que não queria se impor para impedir que alguma coisa além dele aparecesse. Shakespeare é um fenômeno.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

O poema - Sofia de Mello Breyner



O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo


Livro Sexto (1962)

segunda-feira, novembro 27, 2006

sexta-feira, novembro 24, 2006

A Pausa de Alfredo Bosi


A Pausa

A pausa é responsável por marcar as células métricas e sintáticas, ordenando, desse modo o tempo da leitura. A pausa divide e, no dividir, equilibra. A pausa é dialética. Pode ser uma ponte para um sim, ou para um não, ou para um mas, ou para uma suspensão agônica de toda a operação comunicativa.

Na medida em que exerce uma função abertamente semântica, a pausa pertence antes à ordem da entoação e do andamento que à ordem, mais regular e cíclica, do metro.

A pausa que separa a frase que foi da frase que virá é um silêncio, cujo sentido vivo já pulsa na frase que foi. Vamos ler cada uma das nove pausas do poema “Maça” de Manuel Bandeira:

Por um lado te vejo como um seio murcho/
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário/

És vermelha como o amor divino/

Dentro de ti em pequenas pevides/
Palpita a vida prodigiosa/
Infinitamente/

E quedas tão simples/
Ao lado de um talher/
Num quarto pobre de hotel//

quinta-feira, novembro 23, 2006

Espessura Temporal na pintura e o relacionamento desta com a música

No campo das artes, trabalho essencialmente com a pintura, a fotografia e o vídeo. Neste documento é abordado o relacionamento e as implicações das imagens produzidas pelos meios artísticos mencionados acima no espaço e no tempo.

Durante o processo de uma pintura, surgem diversas imagens que vão sobrepondo-se às anteriores, produzindo uma seqüência de apagamentos das quais resultam outras imagens. Ao observar o processo, questões relativas aos conceitos estabelecidos e cristalizados de espacialidade, temporalidade e materialidade se impõem:

• É possível resistir ao tempo, tornar um instante durável ou fazê-lo existir por si só?
• Como escapar à efemeridade das imagens?
• Como converter uma seqüência temporal de gestos, em imagens reversíveis do tempo sem que isso se torne um mero efeito tecnológico?
• Como criar uma espessura temporal a partir de movimentos, deslocamentos no espaço?
• Como criar uma nova dimensão temporal contando apenas com o encontro sensível entre qualidades intensivas mutáveis e um observador?
• Como resgatar o "tempo perdido" por meio de imagens, de sensações audiovisuais?

Fala-se aqui de um tempo proustiano. "Para sair das percepções vividas não basta evidentemente memória que convoque somente antigas percepções, nem uma memória involuntária, que acrescente a reminiscência, como fator conservante do presente. A memória intervém pouco na arte, mesmo e, sobretudo em Proust" - dizia o filósofo.


Para o artista é premente tentar pensar, com os recursos e instrumentos propriamente artísticos, a situação contemporânea e o questionamento radical que ela comporta: a aceleração exponencial derivada da avalanche tecnológica acelerada e seu impacto sobre a "humanidade". Para tanto, este ensaio privilegiará uma espécie de aguçamento da percepção do tempo, do espaço e da matéria.

À medida que a tecnologia progride e se dissemina, mudanças ocorrem no campo da arte. O progresso tecnológico faz emergir novos modelos de criação e de produção, refletindo a cultura e paradigmas de cada época. Por outro lado, também as criações artísticas, científicas e filosóficas fazem surgir novas possibilidades tecnológicas.

Portanto os atuais processos tecnológicos digitais de captação e de pós-produção de imagens nos impelem a avançar sobre a linguagem audiovisual com a intenção de estudar os novos parâmetros estéticos e pesquisar problemas relativos à virtualização do espaço, do tempo e do corpo.

Na produção audiovisual não é incomum unir elementos advindos dos diferentes segmentos, da ciência, da arte e da filosofia. No entanto, a intersecção entre eles permite o surgimento de novas possibilidades de atuação criativa e de atualização do trabalho artístico.

A partir de duas óticas principais sobre o tempo (Bergson e Bachelard), serão analisadas com objetivo de refletir, discutir e desenvolver pontos de vista dentro desta linha de pesquisa.

O cerne da filosofia de Bergson é a intuição da duração (durée) – a representação de uma duração heterogênea e qualitativa. A duração é a consciência, onde se unem a experiência e a intuição. Em outras palavras, o tempo é a sucessão dos estados de consciência. É um processo em contínuo enriquecimento e não divisível. Onde há tempo pode haver semelhança, mas não identidade. É o que é chamado de tempo vivido.

Na dialética da duração, Bachelard não aceita a continuidade de Bergson. Se o tempo é criativo, não por virtude da permanência do passado, mas através de uma decisão no sentido etimológico do termo: o término de cada instante significa, ao mesmo tempo um novo começo. A partir de uma intenção que recortamos o que compõe nosso passado. A memória não se baseia na ordem temporal, mas constrói o tempo ao redor de um acontecimento de modo a fixá-lo no passado. Portanto o tempo é conseqüência do querer. Tempo pensado gera tempo vivido.

Como transcrever a relação destes tempos de Bergson e Bachelart com as artes pictóricas e musicais? Da Vinci afirma que, “a arte da pintura supera a música e se coloca numa ordem superior a esta, porque não desaparece como a música. A pintura permanece o tempo todo, já a música dependendo do sentido da audição desaparece após o término do som de cada nota musical”. Ao ouvirmos diversos textos musicais, alguns destes podemos reter uma melodia completa, uma experiência vivida, em outros fica armazenado o último instante musical. É bastante questionável se há uma superioridade da música em relação à pintura. É sabido que a visão é o sentido mais predominante do ser humano, mas isto não dá direito a definirmos uma hierarquia decrescente aos sentidos humanos.

Se fizermos uma analogia das camadas de pintura com a sobreposição de notas musicas, surge uma polifonia de imagens equivalente a um texto musical. A cada escolha diante do processo criativo é definido um tempo. Refiro-me as escolhas durante o processo de pintura onde é o tempo é sentido na passagem das camadas pictóricas. Surgem diversas imagens correspondentes a uma pintura especifica. A impressão vivida resulta na variação de escolhas no processo criativo permitindo aumentar ou diminuir o tempo sentido. O processo criativo musical é semelhante com o da pintura. Na audição de um texto musical nos fica uma impressão de um tempo retido, que pode variar de um instantâneo até um infinito. Na pintura e na música um pequeno número de variações pictóricas ou musicais respectivamente pode fazer a sensação de tempo diminuir, aumentar ou esgarçar, chegando muito próximo a uma eternidade.

O processo criativo na pintura é composto de diversas decisões durante o pintar. Se conjeturarmos uma interrupção no meio do processo, será possível saber o final deste? Poderemos imaginar o percurso da tela ao final? Para Pondy, “o futuro é uma presentidade e possui uma verticalidade”. Portanto, podemos costurar o futuro através do presente. Quando Levistrauss nos mostra as camadas adjacentes de uma montanha, o quanto de semelhança há com as camadas da pintura? Neste caso, parece existir um tempo costurado, podendo prever as futuras camadas que decorrerão nesta montanha? É o devir de Heráclito ? As montanhas de Levistrauss nos mostram a forte inter-relação entre a natureza e a arte.

Cada arte tem sua especificidade na capacidade de reter e representar o tempo. Ontologicamente a literatura tem demonstrado nas suas obras literárias a contenção de múltiplos tempos (tempo: presente, passado, futuro); a música é responsável por um tempo único e linear; a pintura domina um tempo espacial, a fotografia fixa um tempo instantâneo e o vídeo um tempo virtual manipulável com uma duração ajustável.

Ao pensarmos no tempo sob a ótica de Sto. Agostinho, “o tempo não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um continuo e indivisível.”, chegamos à conclusão que o tempo nada mais é que uma extensão dele próprio. Passamos a definir vários tipos de tempo: cronológico, vivido, pensado, psicológico e sentido. Ao ouvirmos o conjunto das três Gymnopédies de Satie e comparando a primeira das Gymnopédies com a segunda, é possível observar na segunda uma extensão da primeira, um alargamento dos intervalos de silêncio, um alargamento do tempo entre as notas musicais. Ao experimentarmos a extensão ou distensão nas Gymnopédies, e como se ficássemos num eterno presente. É possível também provocar a mesma sensação de eternidade na pintura ao contemplar as telas negras de Mark Rothko. Paira um olhar, um silêncio eterno. O fator predominante é que este tempo denominado psicológico pertence à consciência de cada um de nós.

Para o ensaísta e escritor Anatol Rosenfeld, um tempo é produzido entre o estimulo a uma solicitação e a resposta gerada. Entre o estimulo e a reação surge o território da dúvida, um hiato, um intervalo temporal, inexistente para os animais, pois estes vivem num eterno presente, não possuindo esta ambigüidade. Os animais agem por reflexo enquanto o ser humano por reflexão. A resposta do animal é instantânea ao estimulo, o homem necessita de um espaço temporal para reagir. Sinto que na criação de uma pintura, esta aprisiona muito destes tempos devido aos períodos de dúvida, de questionamento. No caso desta arte, a pintura, o processo opera no acontecer do quadro.

Assim o quadro representa tempo. Como esse tempo é entregue ao espectador? O que é o tempo de um quadro para seu espectador? Esse tempo do espectador não é o tempo vivido do pintor, isto é o tempo de criação da obra. Jacques Aumont, escritor francês define dois tempos para o espectador: o tempo ocular e o tempo pragmático. O tempo ocular é resultado do processo ótico do olho sobre a superfície da imagem. É a varredura automática da imagem. O tempo pragmático é o tempo necessário e eficaz para vermos a essência da imagem num contexto próprio pertencente a cada um dos espectadores. É difícil definir um tempo para a duração do tempo pragmático.

Ao abordar o tempo e a memória Kundera afirma que, “O Homem é separado do seu passado por duas forças que entram em ação imediatamente e cooperam entre si: a força do esquecimento que apaga e a força da memória que transforma .” Um pensamento muito similar e sinérgico ao de Bachelart, em que o importante para o homem não são os fatos vividos mas o simulacro destes. Este simulacro é composto de instantes impressos na consciência de cada homem. O uso do vídeo como máquina de visão, permite reter este conjunto de instantes e vê-los de forma diferente e manipulável. O que fica em nós depois de vermos uma foto ou um vídeo sobre um determinado fato ocorrido? Será que permanece a realidade do fato ou a imagem vista através da fotografia ou do vídeo? O vivido passa a depender de novos fatores, e portanto há uma probabilidade de mudarmos o nosso passado.

As artes se articulam continuamente ressoando umas nas outras. Não existe uma arte superior ou inferior à outra. Cada arte expressa de forma impar o seu melhor através de sua especificidade. A pintura é composta de luz, cor e matéria, a música de notas musicais e melodias, a literatura de palavras, frases, parágrafos. A construção da pintura pode ser vista de forma idêntica à criação de um texto musical, onde cada camada pictórica nada mais é que uma adição de notas musicais, suscitando um novo espaço. Ora, durante todo o tempo, o artista parte de uma impossibilidade, ele pretende consagrar um instante expressivo numa determinada matéria, ignorando os limites físicos, e inaugurando um novo tempo através deste espaço.

Em o “Olho Interminável”, de Aumont, ele salienta três questões da pintura: o impalpável, o irrepresentável e o fugidio. Estes pontos também passam pelo domínio da música. Na pintura, o impalpável é a cor, a luz que não podem ser tocados; na música por mais que o instrumentista a toque, o observador só pode ouvi-la. O irrepresentável é um desafio para o pintor e para o músico. Beethoven, grande alquimista da arte, se consagrou ao representar a natureza através da Sinfonia no. 6 em Fá maior op.68 < Pastoral> de caráter bucólico. Cézanne e Monet representam a natureza de forma maravilhosa em suas pinturas impressionistas. Por último, o fugidio é composto da efemeridade das imagens na pintura e sons transitórios na música. Ao término de cada fase da pintura ou de um texto musical, um apagamento e o surgimento de uma nova lembrança.

As cartas de troca entre os artistas Wassily Kandisky e Arnold Schöenberg derivaram numa terceira arte, uma obra literária, discutindo a relação entre as artes pintura e música. Numa das cartas de Kandisky para Schöenberg se fala da falta de importância da forma na pintura, valorizando o ritmo e a composição desta. Este pensamento sintoniza com o do músico que objetiva muito mais uma linguagem (gramática) e menos um discurso (comunicação). Usar uma estrutura construtivista é apenas uma gramática não possuindo o essencial da arte, o enunciado. Schöenberg responde a esta carta afirmando que há necessidade de eliminar a vontade e o desejo do artista, em favor da experimentação plástica. Isto salienta a importância da articulação e ressonância entre as diversas artes. Outro exemplo de articulação no campo das artes pode ser visto entre Goya e Balzac. Se virmos as pinturas e os texto de Goya em “Os Caprichos”, existe uma sintonia enorme com a obra de Balzac, “A Comédia Humana”. Ambas, criticas sociais do homem, da cidade e da sociedade. Meios diferentes, ressoando um mesmo enunciado.

O entendimento de tempo se dá entre esta simbiose que existe entre o tempo e o espaço. Perceptivamente é na geração de um espaço, de um intervalo que se cria um tempo, um tempo presente e real. Em frações de décimos, segundos este tempo se torna totalmente virtual e irreal. Ao percorrer o tempo passado através de uma máquina de vídeo, o que realmente estaremos vendo? Um tempo passado, ou um tempo presente do passado de uma determinada imagem. Existe um tempo passado no presente? Existe um tempo futuro no presente? Ou o que existe é apenas um tempo presente, o tempo que vivemos.

A tecnologia atual nos permite aumentar nossa percepção visual, auditiva e sensitiva, ampliando nosso horizonte em relação ao tempo. A possibilidade de armazenar a captação continua dos momentos vividos não nos deixa esquecer esquecendo. Surgem inúmeras possibilidades das formas variantes na manipulação do tempo: rápida, inversa, aglutinada, expandida, congelada e comprimida. Que tempos são estes? Esta mudança paradigmática acarreta um repensar das filosofias relacionadas com tempo de Bergson, Sto.Agostinho e Bachelart. Esquecer o fato e lembrar da imagem vista, sintoniza com Bachelart, o vivido é o simulacro, mas se a imagem lembrada for exatamente a vivida, estaremos próximos de Bergson?.

Em cada trabalho procuro colocar uma parte do meu conhecido junto com uma área de incerteza, de investigação, de experimentalismo. Quando termino de executar uma pintura, uma fotografia ou um vídeo, penso que na próxima experimentação darei um passo a mais. O ato artístico é um pequeno instante quase imperceptível de consciência, resultado das dúvidas e das inquietudes. A opção sempre se faz em direção da dúvida.

Veja os videos que expressam algumas destas inquietutes.




domingo, novembro 19, 2006

Encontro Cosmos




As artes se articulam continuamente. Não existe uma arte superior ou inferior à outra. Cada arte expressa de forma impar o seu melhor através de sua especificidade. A pintura pode ser sentida como num texto musical onde cada camada pictórica nada mais é que uma adição de notas musicais, um novo espaço. Ora, durante todo o tempo, o artista parte de uma impossibilidade, ele pretende consagrar um instante expressivo numa matéria, ignorando os limites físicos, e inaugurando um novo tempo com este espaço.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Trechos da Obra A Cortina de Kundera











Durante os dez últimos anos de sua vida, Beethoven não tem mais nada a esperar de Viena, de sua aristocracia, de seus músicos, que o veneram, mas não o ouvem mais, ele também não os ouve, mas não porque esteja surdo; está no apogeu de sua arte; suas sonatas e quartetos não se parecem com nada, pela complexidade da construção estão longe do classicismo sem estar, no entanto, próximos da espontaneidade fácil dos jovens românticos; na evolução da música, ele tomou uma direção que não foi seguida; sem discípulos, sem sucessores, o obra de sua liberdade vesperal é um milagre, uma ilha.

O Homem é separado do seu passado (mesmo do passado de alguns segundos atrás) por duas forças que entram em ação imediatamente e cooperam entre si: a força do esquecimento (que apaga) e a força da memória (que transforma). ...que nossas memórias não tendo guardado da leitura senão algumas migalhas, reconstruindo dois livros inteiramente diferentes.......

A glória dos artistas é a mais monstruosa de todas pois implica a idéia de imortalidade. É uma armadilha diabólica, porque a pretensão megalômana de sobreviver a própria morte está inseparavelmente ligada à probidade do artista.

ele não escreveu para falar da própria vida, mas para esclarecer aos olhos do leitores a vida de cada um deles.....

quarta-feira, novembro 08, 2006

Imagens pictóricas





























Algumas fotos do atelier.

Obra ou Rascunho

Meu Livro de Arte

Em Crítica Genética da professora Cecilia Almeida Salles, encontramos no texto uma análise interessante entre a relaçcão de uma obra e o rascunho desta. "No conto de Borges o Jardim dos Caminhos que se bifurcam, o personagem Ts'ui Pen diz certa vez: ´Retiro-me para escrever um livro´. Em outro momento, ele avisa: ´Retiro-me para construir um labirinto´. Todos procuram por duas obras, mas ao longo da busca, perceberam estar equivocados quando, diante do livro e seus ´rascunhos´ são um único objeto. Caminhos e descaminhos, que os ´rascunhos´ deixam transparecer, convivem de forma simutânea e harmônica conduzindo o escritor em direção à sua obra. Assim, um personagem pode morrer, ou matar, ou viajar, ou desaparecer, ou...no jardim dos caminhos que convergem em direção à obra publicada.
Para Citarmos um exemplo desta transapência do manuscrito, Ignacio de Loyola de Brandão viveu, ao longo da escritura de Não Verás País Nenhum, uma luta entre pólos antagônicos: sua visão, de certo modo, esperançoso querendo a preservação do homem em seu mundo futuro ficcional e uma perspectiva apocalíptica que a realidade ou o mundo ´lá fora´lhe forçava a adotar. Isto se refletiu em anotações sobre esse antagonismo que minava o escritor e se refletiu, também, em sua busca por meios literários que chegassem à sintese apaziguadora desses dois opostos. A opção se faz em direção à dúvida: ´o vento pressagiando a chuva´ e o ´broto surgindo do chão gretado´ são depois de muito pensar, encaixados, sob uma forma pouco definida, deixando a dúvida e levando o leitor a encontrar a continuidade por ele desejada. "

sexta-feira, novembro 03, 2006

Poesia Dá-me tua Mão - Clarice Lispector




Dá-me a tua mão

Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei naquilo que existe entre o

número um e o número dois,

de como via a linha de mistério e fogo,

e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,

entre dois fatos existe um fato,

entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço,

existe um sentir que é entre o sentir-nos

interstícios da matéria primordial está a linha de mistério

e fogo que é a respiração do mundo,

e a respiração contínua do mundo

é aquilo que ouvimos

e chamamos de silêncio.

domingo, outubro 29, 2006

Análise das três Gymnopédies (Erik Satie) sobre o olhar de memória, tempo, esquecimento e duração.


O cerne da filosofia de Bergson é a intuição da duração (durée) – a representação de uma duração heterogênea e qualitativa. A duração é a consciência, onde se unem a experiência e a intuição. Em outras palavras, o tempo é a sucessão dos estados de consciência. É um processo em contínuo enriquecimento e não divisível. Onde há tempo pode haver semelhança, mas não identidade. O tempo vivido.
Na dialética da Duração, Bachelard não aceita a continuidade de Bérgson. Se o tempo é criativo, não por virtude da permanência do passado, mas através de uma decisão no sentido etimológico do termo: o termino de cada instante significa, ao mesmo tempo um novo começo. A partir de uma intenção que recortamos o que compõe nosso passado. A memória não se baseia na ordem temporal, mas constrói o tempo ao redor de um acontecimento de modo a fixá-lo no passado. Portanto o tempo é conseqüência do querer. Tempo pensado gera tempo vivido.

Para Sto. Agostinho o tempo não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um continuo e indivisível. Vivo no presente.

Ao ouvir as três Gymnopédies se pode imaginar o um lugar sereno, improviso, solitário, à espera que cada nota lhe sugira a nota seguinte (Bachelard). A sensação de fragilidade é grande, os intervalos das notas são bastante intensos deixando que o silêncio entre eles se mostre como se o tempo não contasse. Tudo é muito calmo, quase como um sussurro que nos convida a fechar os olhos e a escutar apenas as notas a chegar uma a uma.

A cada som uma nova lembrança um novo esquecimento, fica difícil reproduzir as notas uma vez terminadas, o apagamento é continuo. Apesar das Gymnopédies serem de curta duração a sensação é justamente contrária. As três Gymnopédies são tremendamente parecidas e é necessário ouvir várias vezes para podermos diferenciar uma da outra. A segunda Gymnopédies lembra uma versão mais lenta da primeira, parece que os intervalos de silêncio aumentaram.

sexta-feira, outubro 27, 2006

Fragmento de "Altazor" de Vicente Huidobro




Sou todo homem
O homem ferido sabe-se lá por quem
Por uma flecha perdida do caos
Humano terreno desmesurado
Sim desmesurado e proclamo sem medo
Desmesurado porque não sou burguês nem raça fatigada
Sou bárbaro talvez Desmesurado enfermo
Bárbaro limpo de rotinas e caminhos marcados
Não aceito vossas selas de seguranças cômodas
Sou o anjo selvagem que caiu certa manhã
Em vossas plantações de preceitos
Poeta
Antipoeta
Culto
Anticulto
Animal metafísico carregado de tormentos
Animal espontâneo direto sangrando seus problemas
Solitário como um paradoxo Paradoxo fatal
Flor de contradições bailando um fox-trot
Sobre o sepulcro de Deus.

terça-feira, outubro 03, 2006

Espessura Temporal da Imagem: Tecnologias – Pinturas e Processos Digitais


À medida que a tecnologia progride e se dissemina, mudanças ocorrem no campo da arte. O progresso tecnológico faz emergir novos modelos de criação e de produção, refletindo a cultura e paradigmas de cada época. Por outro lado, também as criações artísticas, científicas e filosóficas fazem surgir novas possibilidades tecnológicas.

Portanto os atuais processos tecnológicos digitais de captação e de pós-produção de imagens nos impelem a avançar sobre a linguagem audiovisual com a intenção de estudar os novos parâmetros estéticos e pesquisar problemas relativos à virtualização do espaço, do tempo e do corpo.

Na produção audiovisual não é incomum unir elementos advindos dos diferentes segmentos, da ciência, da arte e da filosofia. No entanto, a intersecção entre eles permite o surgimento de novas possibilidades de atuação criativa e de atualização do trabalho artístico.

No campo das artes, trabalho essencialmente com a pintura, a fotografia e o vídeo. O foco da minha pesquisa é a imagem e suas implicações espaciais, temporais e corporais. Durante o processo de uma pintura, surgem diversas imagens que vão sobrepondo-se às anteriores, produzindo uma seqüência de apagamentos das quais resultam outras imagens. Ao observar o processo, questões relativas aos conceitos estabelecidos e cristalizados de espacialidade, temporalidade e materialidade se impõem:

¨ É possível resistir ao tempo, tornar um instante durável ou fazê-lo existir por si só?
¨ Como escapar à efemeridade das imagens?
¨ Como converter uma seqüência temporal de gestos, em imagens reversíveis do tempo sem que isso se torne um mero efeito tecnológico?
¨ Como criar uma espessura temporal a partir de movimentos, deslocamentos no espaço?
¨ Como criar uma nova dimensão temporal contando apenas com o encontro sensível entre qualidades intensivas mutáveis e um observador?
¨ Como resgatar o "tempo perdido" por meio de imagens, de sensações audiovisuais?

Fala-se aqui de um tempo proustiano. "Para sair das percepções vividas não basta evidentemente memória que convoque somente antigas percepções, nem uma memória involuntária, que acrescente a reminiscência, como fator conservante do presente. A memória intervém pouco na arte, mesmo e, sobretudo em Proust" - dizia o filósofo.

Concluindo, para o artista é premente tentar pensar, com os recursos e instrumentos propriamente artísticos, a situação contemporânea e o questionamento radical que ela comporta: a aceleração exponencial derivada da avalanche tecnológica acelerada e seu impacto sobre a "humanidade". Para tanto, a pesquisa privilegiará uma espécie de aguçamento da percepção do tempo, do espaço e da matéria.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Aforismos de Heraclito


Alguns aforismos de um dos maiores pensadores.

Se a felicidade consistisse nos prazeres do corpo, deveríamos proclamar felizes os bois, quando encontram ervilhas para comer

Se todas as coisas se tornassem fumaça, conhecer-se-ia com as narinas.

Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia.

Correlações: completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia e desarmonia, e de todas as coisas, um, e de um, todas as coisas.

Para os que entram nos mesmos rios, correm outras e novas águas. Mas também almas são exaladas do úmido.
Se não tiveres esperança, não encontrarás o inesperado, pois não é encontradiço e é inacessível.

O que aguarda os homens após a morte, não é nem o que esperam nem o que imaginam.
Descemos e não descemos nos mesmos rios; somos e não somos.

O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá; governo de criança.

A harmonia invisível é mais forte que a visível.

terça-feira, setembro 12, 2006

Entrevista sobre o Processo Criativo FAAP 2005



É formado em Engenharia Eletrônica e mestre em Ciência da Computação, nada mais “hard”. Antes de vir para São Paulo para trabalhar nesta empresa, na qual já está há mais de dez anos, Jeron, carioca, desenvolveu software básico para a Marinha e trabalhou na hoje Accenture.

Nesta época seu dia-a-dia é lidar com a gerência de sua área de dia e dedicar-se à pintura à noite e nos fins de semana. Mas a pintura para Jeron não era um hobby. É sim um trabalho.
Adora São Paulo que lhe dá oportunidades de se relacionar com pessoas muito interessantes. Seu interesse pelas artes, em geral, vem desde menino.

Perguntado sobre como vê a criatividade Jeron diz que sempre se sentiu criativo. Na Marinha a sua criatividade era estimulada pela falta de recursos, além disso quanto mais se exercita, mais criativo se fica e de uma idéia central vai brotando uma série de idéias relacionadas, como um braço de um mindmap, inesgotável até que se inicia uma nova jornada e um novo ramo do mindmap se abre.
Como exemplo Jeron cita sua atual fase onde suas raízes cipriotas têm falado alto e todo um ramo de possibilidades estão sendo exploradas a partir de sua visão de cores, um dos pontos altos de seu trabalho.

Kroma, cores em grego, tem sido o ponto de partida para um conjunto de “invenções” : relacionadas a seu trabalho a que denominou Kroma Synergia. Um exemplo é a Kroma Poética : inclusão de poemas em telas, fusão de seu trabalho com a poesia de alguns poetas parceiros como Lorenzo Madrid e Marcela Santatón. Outro é a Kroma Nature onde Jeron quer mostrar através de telas em cores e mesmas telas em preto e branco o jogo de luz e sombra e a associação disso com a interferência humana na ecologia.

E Jeron não vê diferença entre a criatividade em TI e na pintura. E me questiona: qual na diferença entre escrever um programa e um poema? Para ele, programar em C com recursividade, com uma parte de código chamando o próprio código é arte. Tecnologia é arte pura, é criatividade pura.

As pessoas associam arte com lazer, mas para Jeron arte é trabalho. O artista tem obrigações consigo, com sua arte e com os outros (Jeron atua no terceiro setor há anos e defende a contribuição da arte e dos artistas à solução dos problemas sociais brasileiros).
Tem de ter a disciplina de “pintar” todo dia, ver coisas referentes a sua arte todo dia.
Pintar é refletir.É tornar-se uma pessoa mais completa, com uma visão mais espacial, holística .

Adicionalmente cita que as pessoas desconhecem o trabalho artístico. Não imaginam quantas idas e vindas são necessárias para se conseguir “resolver” um trabalho. E aqui ele faz uma grande revelação: O conceito do “resolvido” . Resolver um trabalho artístico é muito diferente de equacionar um problema. Pode-se até iniciar uma tela por impulso, mas a partir daí o pintor cria o seu próprio problema, que ele precisa “resolver”.
Por exemplo: Jeron trabalha com cores, planos, luzes e sombras, outro artista com linhas, outro com fundos, mas sempre há um conceito por trás a que o artista é “fiel” pelo menos durante o tempo de maturação da fase que é também o tempo de maturação do artista em relação a alguma inquietação interna. Enquanto não amadurecer não enxerga a “solução”.

Jeron esclarece que criar é um processo doloroso. É dar a luz, é ter um filho.
Mas aqui também ele faz um paralelo com a tecnologia. Jeron diz que um quadro e um programa de computador nunca estão terminados. É uma construção infinita. Sempre se pode fazer mais e diferente, mas há um ponto em que pintor e programador sentem que precisam partir para o próximo. A grande diferença que ele vê entre ambos é que o programador parte de uma especificação. O pintor de uma inquietação.

Já quanto à vida de administrador e de artista Jeron diz que se casam muito bem.
Ele leva a visão espacial ampliada e holística para suas questões administrativas, bem como utiliza os conhecimentos de gestão e marketing para melhorar sua performance como artista, no que tange à comercialização do seu trabalho, que demanda muito relacionamento, planejamento e viabilização.

O problema que ele encontra é que as instituições hoje querem ser criativas mas não querem entender que a criatividade é unicidade/originalidade e que se opõe visceralmente à mediocridade e a pasteurização. O artista é um abridor de fronteiras, é um contestador. Hoje as instituições não querem quem pensa, só quem executa. As instituições medem o trabalho em horas de dedicação exclusiva e confundem quantidade com qualidade. Adicionalmente, as instituições não querem quem erra e a criatividade tem muito a ver com o erro. Errar na sua concepção é fazer para acertar.

Para criar tem que fazer, desfazer, refazer. Não existe fazer sem refazer. O criador cria na dúvida! Por isso mesmo às vezes se surpreende com o resultado do próprio trabalho: “Será que fui eu quem fez?”. Está testando limites. Outros trabalhos frustram e exigem o dispêndio de muita energia para serem “resolvidos”. E ainda assim, quando inicia um novo trabalho a certeza não está presente. Vem a dúvida de novo!

A única certeza é trazida pela experiência que começa a dar voz a uma intuição e paz interior de que seja qual for o trabalho mais dia menos dia ele também será resolvido, como diria Picasso.

Jeron considera essa dúvida importante porque sem ela o trabalho tende a cair.
Como exemplo cita alguns artistas que encontraram uma fórmula de sucesso e passam a reproduzi-la em série, “perdendo a alma” do trabalho. Tem trabalhos que satisfazem, outros não , mas sempre tem que haver o mau para se saber quando outro é bom.

O artista entende e trabalha as polaridades, assim como no filme Salomé de Carlos Saura , onde este explora o preto e o branco, o bonito e o feio, o rápido e o lento ou no poema de Clarice Lispector “Não te amo mais” onde ela explora o não na leitura de cima para baixo e o apaixonado sim na leitura de baixo para cima do mesmo poema.

Quanto às técnicas, estas existem aos montes. Van Gogh dizia: “Você quer dominar a técnica, mas depois disso o que você vai fazer com ela?”. Só podemos dar o que temos. Não há como dar alma a um quadro se não a temos. Para finalizar Jeron conclui que só é artista, em qualquer profissão, aquele que está de bem com a vida.

domingo, setembro 10, 2006

Video e Cinema sempre são documentários?


Vídeo e Cinema sempre são documentários? Em “O Olho Interminável” de Jacques Aumont, desejo ou não, o filme reproduz o que aconteceu na filmagem (Eric Rolmer: “Todo grande filme é um documentário”). Na maioria dos documentários o personagem olha para câmera, o que fornece ao espectador um sentimento de estar numa entrevista. O vídeo vem a ser um ensaio não escrito. Roteiros, simultaneidade de captação e visão são obtidos através deste novo dispositivo. Em “À quoi pensent les filmes”, de Jacques Aumont é defendida a idéia que cinema é uma forma de pensamento. Aumont nos fala de idéias, emoções e afetos através de um discurso de imagens e sons tão densos quanto o discurso de palavras. Gilles Deleuze posiciona Godard como um pensador no cinema comparando com a escrita produzida por filósofos e um dos maiores cineastas e videastas.

Interessante o posicionamento de Méliès se estava interessado no ordinario do extraordinário enquanto que Lumière o extraordinário no ordinário. Lumière considerado o último pintor impressionista.
Pintores tão importantes e diferentes quanto Poussin, Velázquez ou Chardin, trabalharam para mostrar o tremor da luz nas folhas, ou atmosfera dos fins de tarde. O Cinema vem a sistematizar tais efeitos e os cultivado por si sós, de ter erigido a luz e o ar em objetos pictóricos.
Desta forma a relação entre cinema/vídeo e a pintura está ligada às questões impalpável, irrepresentável e o fugidio. Impalpável onde a luz não pode ser tocada, é matéria visual, excelência pura, esta herança vindo de Ticiano e Velázquez. O irrepresentável um desafio à habilidade do pintor e o fugidio em que a questão do tempo vem a questionar como fixar o efêmero da pintura.

A pintura é efêmera, ela não pode rivalizar com o automatismo que faz a força da revelação fotográfica. Por isto as revelações da pintura não cairão sobre o instante mas sobre a sensação.
O quadro representa o tempo. Como esse tempo é entregue ao espectador? Ou ainda o que é o tempo de um quadro para o espectador?

sábado, setembro 02, 2006

Quero que o efêmero se eternize!


É necessário tempo para aprender a olhar. Na minha pintura além das tintas convencionais uso outros materiais como parte do meu espaço pictórico. Os mais utilizados são colas, papéis, chapa de alumínio, de cobre, latão, placas de acrílico, barbantes e fios de metal. Há um dialogo entre os materiais metal e acrílico com as propriedades reflexo, opacidade e transparência. Este dialogo coexiste num mesmo tempo e espaço .

Durante os meus processos de criação surgem alguns questionamentos .

Como olhar atentamente ? Como descobrir a sutileza dos objetos que surgem?

Como desacelerar o meu olhar? Como encontrar a pausa?

Como perpetuar tempo ?

Como observar o objeto temporário?

Observo que durante o meu pintar surge com a pintura , novos componentes paralelos à pintura que na maioria das vezes desempenham papel de coadjuvante da pintura principal, mas num determinando instante estes componentes podem adquirir o papel principal invertendo a situação. Aquilo que parecia um adjetivo vira um substantivo. Neste ponto é necessário que eu esteja com aceleração baixa ou praticamente zero. Então poderei ver novas pinturas surgindo ao meu redor. É necessário que o tempo se perpetue, se esgarce para que não só eu as veja.

Entrevista de Vera Mantero e José Gil (“Elipse – Uma Gazeta Improvável”, Lisboa, 1998")


Ora, a mais recente expressão desta urgência encontrei numa revista editada em Portugal, intitulada Elipse, cujo primeiro número tem por tema A vida pobre. Depois de afirmar que a cultura está em erosão, e também o espírito, a bailarina Vera Mantero escreve: “O espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. O espírito é uma criatura muito ávida de ocupação. precisa de se ocupar constantemente. o espírito deve ser o único pedaço de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com qualquer coisa. se dissermos a coisa assim, a palavra ‘entretenimento’ torna-se muito menos pecaminosa. enquanto me entretenho com o Glenn Gould e as suas variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha volta. Necessitamos das artes para não morrermos. as artes falam connosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam. não se calam, não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio... vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. talvez não só de possibilidade como de interesse. um ponto em que é possível e interessante existir.... o ser humano precisa de não estar sempre no quotidiano, precisa de sair do quotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. Precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objectivos diferentes desses, precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais subtil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que baralham e iluminam. é preciso reconhecer essas coisas, assinalá-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em acções, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reorganizando. É preciso olear o espírito, olear o ser. é preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. é preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na associação, no delírio, na sujidade... na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objectos e sentidos entre si, é preciso entrar na transformação, é preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, nas palavras no humor, no pensamento, na relação com os outros.
Nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter muito pouco disto e é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes estamos muito tristes ou temos a sensação de que a vida desapareceu de cá de dentro.”
Chamo a atenção para esse ponto de possibilidade e de interesse em que um espírito deveria estar para que fosse possível e interessante existir, como diz Mantero, e que é justamente o que viver e pensar como porcos nos impede. José Gil, como que em eco aos termos empregados por Mantero, escreve em seu artigo, no mesmo número: “Aqui há tempos atingi aquele ponto central de onde descobri a verdade: que a minha vida é irremediavelmente pobre. Não há nada a fazer-lhe. Aliás, já tentei de tudo, e quanto mais me agitava para contrariar a tendência, mais me aproximava daquele ponto terrível. [...] Não que me falte alguma coisa. Vou a concertos e a exposições, leio muitos livros e revistas, tenho uma discoteca e biblioteca razoáveis, tenho amigos e relações, em suma nada me falta para ter uma bela vida. Mas criou-se uma espécie de fosso à minha volta. É invisível, mas está lá, e faz-se sentir mesmo no meio do concerto mais empolgante. O que ouço toca-me, mas é como se não me tocasse, se olho bem; o que leio fica apenas em mim, não passa de mim, e acaba por amarelecer, sem eco; o que vejo nas galerias de arte e o que lá se diz, é como se não tivessem a ver com a minha vida. E tudo o resto é assim. Há um grande buraco no meio das pessoas que lhes abafa a fala e absorve as vozes que vêm dos outros... O buraco alastra como o do ozonio. Vai comendo o céu. É como se a pouco e pouco me comesse o corpo. Noto agora que há muito tempo a vida se me empobrecia. Muitas coisas começaram a desaparecer dos meus hábitos, sem que desse por isso. Primeiro, as palavras. Algumas, para começar, depois muitas, numa torrente imensa, desapareceram do meu vocabulário... Com as palavras foram-se idéias, sensações, sentimentos. Gostava imenso de uma ária de ópera [...] Então chorava. Era a melhor maneira de me exprimir. Hoje, já nada disso acontece. É que já não preciso de me exprimir. Tudo me exprime, e muito melhor do que poderia fazê-lo. Para começar, há o Plácido Domingo, e os outros, e as vozes que porventura nascessem na garganta, seriam logo canalizadas, moldadas por esses óptimos cantores de ópera. Logo ali, no fundo da garganta, quando eu quisesse dizer a minha solidão e o abandono em que me deixou o amor, eu ouviria, tenho certeza, o fulgor e o luxo da voz de Plácido Domingo... E quem sou eu para pretender assim exprimir emoções tão fortes, mais fortes do que todas aquelas de que sou capaz? Por isso calo-me.”

quarta-feira, agosto 30, 2006

Materias de Pintura


Nos últimos anos meu trabalho está ligado diretamente à pintura com pincel e tinta, à tecnologia e a manipulação da imagem. Além da inserção de novos materiais reais fisicamente, há uma construção de uma paisagem eletrônica que é definida como arte também. Com uso da tecnologia consegue-se transformar a imagem através de inúmeros mecanismos de transformações. É importante que a manipulação digital das imagens implique numa memória seletiva que pode e deve conservar resquícios da imagem original. O uso de propriedades da física ótica será necessário nas alterações perceptivas da captura da imagem. O captar do processo de constituição e dissolução das imagens será parte intrínseca no resultado do trabalho proposto.
Minha pintura sempre foi decorrente de planos de cor e de matérias diferentes resultando num trabalho básico de construção. Os materiais são diversos: tinta, cola, papéis diversos, chapas de alumínio, de cobre, latão, de acrílico, barbantes e fios de metal. No caso das chapas de acrílico, latão, cobre e alumínio, o uso do reflexo permite que o trabalho tenha resultados diferentes conforme o tempo, a hora do dia, do posicionamento do espectador e do posicionamento do próprio trabalho. Em alguns trabalhos o uso de chapas de metal permitirá que o espectador veja sua interferência direta na pintura e com isto há uma troca entre este e a pintura, ambos interferem um no outro de forma diferente. O espectador e o ambiente fazem parte intrínseca do trabalho do artista. O trabalho passa a ser um trabalho múltiplo, contudo singular, para cada espectador de forma interativa. A sombra gerada por algumas interposições (acrílico amarrado na tela dos trabalhos) é imprescindível para a questão analisada. Os materiais vão se mesclar, gerando um conjunto de processos ilusórios. Na matéria do metal está nossa essência e nosso mundo. A harmonia entre a pintura, leve e etérea, com o peso do metal é um encontro maravilhoso onde surge uma alquimia pictórica no metal fazendo-o totalmente leve sem que desapareça o seu peso e sua responsabilidade.

À medida que a tecnologia avança e se dissemina, o conceito de arte sofre mudanças. A tecnologia faz emergir novos modelos de criação e de produção, reflete a cultura e modelos de uma época, faz surgirem novos modelos, amplia ou até elimina a visão anterior, gerando um novo paradigma. “A arte é um retrato da filosofia de cada época”.

Os processos digitais de captação e de pós-produção de criação de imagens analisam uma nova estética que resgata estruturas narrativas diferentes da clássica. As novas tecnologias permitem o avanço na linguagem, uma nova gramática. A questão da imagem abordada desde a pintura à foto, do cinema à televisão, do vídeo à informática que resulta no uso de novas tecnologias e ferramentas para a produção audiovisual afeta não só a linguagem cinematográfica, mas o espectador. O uso combinado de cinema, vídeo, foto vislumbra o surgimento de uma nova forma de formas de produção.

Meu trabalho é composto por um conjunto de pinturas, fotos, vídeos e outros objetos que discutem questões e visões da arte abaixo:
¨ Como resistir ao tempo? Tornar um momento durável ou fazê-lo existir por si?
¨ Como resistir à efemeridade?
¨ Como criar uma espessura temporal e não só espacial?
¨ Como associar o reflexo na intervenção de uma imagem na outra?
¨ Que soma é esta contaminação de imagem em outra?
¨ Uma pintura efêmera é uma imagem efêmera?
¨ Como armazenar inúmeras pinturas que surgem ao meu redor?
¨ Imagens efêmeras são criadas e destruídas, como resgatá-las?

As perguntas geralmente não têm respostas, já que respostas tendem a ser apenas opiniões que não fazem no percurso e trajetória do artista.